sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

O Jogo Coletivo, a "Des"fragmentação e a "Re"integração do Jogo

1. Jogando como equipe

“... o que de mais forte uma equipa pode ter é jogar como uma equipa.”
(Mourinho, 2003)

Segundo Amieiro (2005), a organização defensiva só conseguirá ser verdadeiramente coletiva se as ações tático - técnicas realizadas por cada um dos onze jogadores forem perspectivadas em função de uma idéia comum, respeitando um referencial coletivo, em que as tarefas individuais dos jogadores se relacionam e regulam entre si. O autor ainda afirma que apenas assim o “todo” (a equipe que se defende) conseguirá ser maior que a soma das partes que o constituem (comportamentos tático-técnicos de cada atleta).
Quanto o autor fala sobre “idéia comum” ou “referencial coletivo” é preciso entender que não está se referindo a automatismos fechados, ou algo já estabelecido de forma estanque, mas a princípios que norteiam a ação coletiva da equipe e por conseqüência as ações individuais dos atletas nela inseridos. Pode-se constatar isso no trecho seguinte da sua frase em que se refere às interações entre jogadores (quando diz “relacionam”) e ao processo de feedback (quando diz “regulam”) que ocorre permanentemente durante as ações coletivas e individuais dos jogadores.
Portanto faz-se necessário construir e definir princípios que balizem os comportamentos coletivos (princípios de jogo), visto que o jogo pelo seu caráter imprevisível não permite ações planejadas em sua plenitude, pois vai sendo construído conforme as respostas que seus jogadores vão oferecendo pontualmente naquelas situações. Respostas essas que surgem da interação dos mesmos com sua equipe, com o adversário, com a posição da bola e de um número muito alto de outras variáveis que estão nele inseridos.

2. Construindo Referenciais (Princípios de Jogo) comuns

A simples informação não altera comportamentos e estes demoram muito tempo para serem alterados (FRADE, 2004). Cabe ao treinador direcionar esses comportamentos para o modelo de jogo que pretende adotar, através de exercícios com complexidade crescente, sempre atuando na zona proximal de conhecimento do atleta com um objetivo final muito definido. O quão elaborado será o modelo de jogo depende da qualidade com que esse processo será aplicado e do conhecimento que o treinador tem sobre o jogo.
O objetivo é que a equipe apresente respostas coletivas para a maior quantidade possível de situações que estejam presentes nos quatro momentos do jogo: com a bola, sem a bola, transição defesa – ataque e transição ataque-defesa. Nessa proposta uma equipe pode ter a bola, mas, por estar com vantagem no placar, não quer dar profundidade ao jogo e quer defender-se com a posse. Suas movimentações são bem diferentes de quando ela precisa marcar gol. Caso algum(ns) jogador(es) não estejam com os princípios daquele momento assimilados, pode(m) apresentar respostas incongruentes com os objetivos momentâneos da equipe, realizando movimentações para regiões em que a pressão do adversário é mais intensa, aumentando os riscos de perder a bola e não colaborando com a meta coletiva estabelecida para aquela pontual situação, a manutenção da posse de bola simplesmente. E que fique bem claro com esse parágrafo que “estar defendendo” ou “estar atacando” independe de ter ou não a bola, pelo caráter indivisível que o jogo apresenta ao contemplar os quatro momentos anteriormente citados que se manifestam intimamente relacionados.
Os princípios de jogo estão ligados aos hábitos da equipe, que são resultado da interação dos hábitos individuais dos jogadores, portanto aí deve estar focada a intervenção do processo de treino. Para Frade (2002), o hábito é um saber-fazer que se adquire na ação, portando vivenciar os devidos princípios de uma forma hierarquizada e sistematizada é fundamental para que o objetivo final, ou seja, a implantação do modelo de jogo idealizado pelo treinador baseado no contexto em que se encontra, materialize-se em campo de forma condizente com a proposta inicial.    

3. Ataque e defesa: onde um começa e o outro termina?

É quase que fato consumado no futebol entender o processo ofensivo (ataque) o momento em que a própria equipe tem a posse da bola e o processo defensivo (defesa) o momento em que a posse de bola é do adversário.
E nas transições, quem está atacando e quem está defendendo?
Simples, na transição defesa – ataque (ofensiva) eu estou atacando e na transição ataque-defesa (defensiva) meu adversário ataca.
Ainda bem que, para os profissionais do futebol, os jogos coletivos são muito mais complexos que essa singela interpretação. Senão qualquer torcedor entenderia o jogo tão bem quanto um treinador de equipe de alto nível.
Os processos ofensivos e defensivos estão tão intrinsecamente conectados que seria impensável analisá-los e treiná-los de forma isolada.
Imagine a seguinte situação:
Sua equipe está vencendo a partida e adota como estratégia manter a posse de bola (prioritariamente no campo de defesa pela ocupação espacial do adversário) com o objetivo de “apenas” esperar o tempo terminar. A equipe adversária realiza uma marcação pressão para recuperar a bola rapidamente e tentar realizar uma finalização a gol.
Pergunta: Quem está defendendo? E atacando?
Essa situação muito comum nos jogos que presenciamos mostra que a posse de bola por si só não determina a atitude de uma equipe. E a ausência dele também não.
E respondendo a pergunta do título desse artigo, podemos entender que os processos ofensivos e defensivos acontecem simultânea e constantemente dentro do jogo e isso deve ser levado em conta na elaboração de um treinamento tático.  

4. Uma visão limitada da marcação

É muito comum ouvirmos os treinadores falarem em sistemas de marcação, ou como a equipe deve anular o oponente, e que em determinada partida ele optará por tal sistema de jogo por considerá-lo mais eficiente para marcar adversário e garantir um resultado. E a questão que aparece nesse momento é se todos eles estão perspectivando a marcação com os mesmos princípios. Muito normal um treinador de terceira divisão vê-la de forma diferente de um de primeira divisão, é uma questão de nível de elaboração quanto à proposta de jogo. Também devem apresentar diferenças um treinador que adota marcação mista e um outro que prefira marcar por zona, já que ambas possuem na sua essência diferentes referenciais. Alguns autores escreveram sobre o tema.
Lópes Ramos (1995) diz que a marcação é uma ação tática dos jogadores da equipe que está sem a bola realizam sobre seus adversários, evitando o contato desses com a bola ou de o fazer nas piores condições possíveis. É realizada sobre todos os adversários com ações diferentes sobre o portador da bola, sempre com o marcador entre o adversário e a própria baliza, orientado em relação ao seu par. A marcação deve ser tanto mais forte quanto mais próxima ao gol defendido. Pacheco (2001) define marcação como uma ação tática em que os defensores aproximam dos atacantes, colocando-se entre eles, a bola e o gol defendido, impedindo a progressão, o passe e a finalização, buscando a recuperação da bola.
Reparem que essa duas definições para marcação colocam o adversário como referência primária para a marcação. O objetivo principal (e provavelmente único) é evitar qualquer ação do mesmo. E mostra-se como único porque não apresenta nenhuma relação com a forma de jogar da equipe que está marcando, que apenas quer impedir o jogo do outro time. Não apresenta porque todas as ações citadas pelos referidos autores são individuais. O time marcador corre atrás do time que joga, deixando de impor sua própria forma de jogar, desprezando uma ocupação espacial racional. Considera a marcação com um momento estanque, dissociado dos quatro grandes momentos do jogo (sem bola, transição defesa-ataque, com bola, transição ataque-defesa).
Quando “Lópes Ramos” escreve “a marcação deve ser tanto mais forte quanto mais próxima ao gol defendido” essa proposta torna-se ainda mais limitada, pois desconsidera a possibilidade de se realizar pressão sobre o adversário em zonas mais adiantadas. Em nenhum momento o sistema de coberturas é colocado como uma possibilidade, afinal, os marcadores nunca saberão onde estarão seus companheiros de equipe que nesse momento estão na dependência do “seu par”.
Sob essa perspectiva, o jogo passa a ser visto de uma forma fragmentada onde suas partes não se relacionam nem se interagem. E, ao assistir uma partida de futebol em qualquer nível podemos constatar que os quatro momentos citados anteriormente ocorrem o tempo todo, em sucessão e com conseqüências um do outro. O treino deve considerar essa interação, porque querendo ou não o treinador, o jogo será construído dessa forma.
  
5. O que é, afinal, defender (jogar) por zona?

Vemos claramente no futebol mundial atual que as grandes equipes em sua maioria jogam marcando por zona seus adversários. Equipes com grandes jogadores que descobriram nessa forma de jogar um caminho para potencializar seus talentos e fazer do jogo coletivo sua identidade. Se esse fato realmente acontece, também é verdade que ainda existem treinadores que a ignoram e justificam-se apontando as limitações desse tipo de marcação.
Bauer (1994) caracterizou a “defesa por zona” assim: 1) a cada jogador é entregue um determinado espaço (zona), pelo qual será responsável durante toda a defesa, 2) quando a equipe perde a bola, cada jogador deve deslocar-se para trás, para a sua zona, 3) na sua zona, o jogador deve marcar diretamente qualquer adversário que nela entre, com ou sem bola, 4) se o adversário muda para outra zona, passará automaticamente a ser da responsabilidade de outro defesa, 5) todos os jogadores da equipe devem deslocar-se em direção à bola e, 6) o portador da bola deverá ser atacado por dois ou mais jogadores por vez.
Essa definição do referido autor, apesar de considerar algumas características da defesa por zona, aproxima-se mais de uma marcação mista, onde cada jogador marca o adversário que estiver na sua zona. E também apresenta algumas incoerências, pois, como vou garantir que a marcação será duplicada sobre o portador da bola se meus jogadores tem como referência a movimentação adversária? Tudo bem, será dentro de sua zona de atuação, mas isso já será suficiente para impedir uma eficiência do sistema de coberturas.
E por falar em referência, aí reside uma brutal distância entre marcar por zona e as outras formas de marcação que visam o encaixe no adversário. A grande referência da defesa por zona são os espaços e fechar como equipe os espaços mais valiosos. Mas onde são os espaços mais valiosos? Aqueles próximos ao local em que a bola se encontra naquele exato momento e que varia constantemente, tornando a gestão coletiva do espaço e do tempo fundamentais. Se a gestão é coletiva, minha equipe deve atuar como um bloco coeso, fechando linhas de passe em progressão, que flutua dependente da circulação de bola do adversário, gerando pressão espaço-temporal no portador da bola da equipe adversária através da ocupação racional dos espaços. Assim obteremos superioridade numérica, pois vejam, que em nenhum momento a movimentação do adversário interferiu no sistema de coberturas que se sucedem a cada variação de ação tática-técnica de ambas equipes.

Melhor que “defender por zona” é falarmos em “jogar por zona” porque expressa com mais clareza o real significado dos objetivos implícitos nessa filosofia. Quando jogo marcando dessa forma, a recuperação da bola deve ocorrer de forma coletiva com total relação com o momento ofensivo. Aliás, dividir o momento “sem bola” do momento “com bola” e ignorar suas respectivas transições é um perigo tão grande como não considerarmos o “jogo por zona” das equipes bem sucedidas do futebol mundial. Ou, talvez, os perigos não sejam maiores um do que o outro, mas o mesmo.   

Referências Bibliográficas

Amieiro, N. (2005) Defesa à Zona no Futebol: Um pretexto para refletir sobre o jogar ... bem, ganhando! Edição do Autor. 2005.

BAUER, G. (1994). Fútbol. Entrenamiento de la técnica, la táctica y la condición física. Editorial Hispano Européia. Barcelona.       

Frade, V. (2002) Apontamentos das aulas de Metodologia Aplicada II, Opção de Futebol. FCDEF-UP. Porto. Não publicado.

Frade, V. (2004) Apontamentos das aulas de Metodologia Aplicada II, Opção de Futebol. FCDEF-UP. Porto. Não publicado.

LÓPEZ RAMOS, A. (1995). El marcaje: Fundamentos y trabajo práctico. Fútbol: Cadernos Técnicos, Nº 1, abril de 1995. 3-14.

Mourinho, J. (2003) Entrevista ao programa <2 parte=""> da SporTV. 14 de maio de 2003.

PACHECO, R. (2001). O Ensino do Futebol de 7 – Um jogo de iniciação ao futebol de 11. Edição do autor.

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Os Padrões das Grandes Seleções na Copa das Confederações 2013: a Passe, a Finalização e o Gol (Parte 3)

As duas ações técnicas fundamentais, o passe e a finalização, suas relações e o aproveitamento em gols como resultante

“O futebol não é um esporte de posse de bola.
É um jogo de gestão de constantes perdas de bola”
(Anderson e Sally in Os Números do Jogo, 2013, p. 141)

Neste terceiro artigo sobre a Copa das Confederações, o objetivo é relacionar duas ações técnicas fundamentais do jogo, como o passe (Parte 1) e a finalização (Parte 2) com a capacidade de atingir o objetivo principal, marcar o gol. Novamente, os números nos fornecem informações sobre alguns padrões, índice de produtividade e preferências das quatro seleções finalistas.
Figura 1 – Relação entre Passes (Total) e Finalizações

A Itália foi a seleção que mais precisou passar a bola para gerar uma finalização (1 finalização a cada 42,5 passes). As outras três seleções mantiveram uma relação entre o total de passes e o total de finalizações muito próximo. Quando o total de passes foi relativizado com as finalizações certas, Brasil e Uruguai tiveram índices muito próximos, a relação da seleção italiana se manteve como a mais alta e a Espanha foi a seleção que mais elevou sua relação (precisou de 78,2 passes para finalizar em gol uma jogada). 
Sendo a ação de finalização da jogada a forma mais comum de marcar gols, as equipes têm (ou deveriam ter) como base de sua idéia de jogo construir muitas situações de finalização, de um determinado tipo (qual seria?), de maneira que seus jogadores tivessem muitas oportunidades vantajosas de concretizá-las em gol(s). 

Figura 2 – Relação entre Passes (Certos) e Finalizações

A relação dos passes certos com o total de finalizações apresenta médias consideravelmente próximas entre as quatro seleções. Na relação com as finalizações certas, as seleções europeias apresentam médias muito mais altas do que as seleções sul-americanas. Na comparação em questão pode-se atribuir essa diferença ao tipo de jogo, à preferência por determinado padrão de sequência ofensiva e também pela competência de seus definidores.
Há uma grande diferença entre finalizar e finalizar no gol (considerada a finalização certa). Geralmente a finalização no gol é produto de uma sequência ofensiva (produção coletiva) que proporciona uma última ação de definição em circunstâncias vantajosas (pressão de tempo e espaço ideal, posição corporal do definidor, etc.) e/ou mérito individual de um jogador (produção individual) que crie esse cenário favorável. Ambas produções, coletiva e individual, acontecem complexamente em paralelo, com predominância de uma ou outra dependendo da circunstância.

 
Figura 3 – Relação entre Finalizações (Total e Certas) e Gols

Na figura 3, está descrita a produtividade ofensiva das equipes. Ao relacionar o total de finalizações com as finalizações certas, observa-se a capacidade das seleções em transformar uma finalização em uma finalização no gol, com as exigências já descritas acima. O Brasil foi mais eficiente nesse quesito enquanto a Espanha foi a menos eficiente, mesmo sendo a seleção que mais finalizou nessa competição.

Figura 4 – Relação entre Passes (Total e Certos) e Gols

Nas figuras 3 e 4, as relações mostram que a seleção uruguaia é aquela que com um menor número de ações técnicas de passe e finalização faz gols. Com exceção da relação das finalizações certas com os gols em que tem um índice maior que o da Espanha, em todas as outras relações (total de finalizações e passes e passes certos), o Uruguai detém os menores índices relativos. Dessa forma, pode-se supor que a seleção uruguaia ou é mais econômica em suas sequências ofensivas ou por opção, ou como consequência das alternativas individuais / coletivas que estão disponíveis. Porém, ter relações mais baixas em grande parte das variáveis apresentadas não foi suficiente para impedir que o Uruguai tivesse a pior classificação entre as quatro seleções semifinalistas. Essa seleção não cumpriu com o objetivo do jogo (fazer mais gols que o adversário) em seus jogos, porque segundo a lógica do jogo a equipe deve buscar “fazer com que a bola entre na meta adversária, com o menor número de ações possível” (Leitão, 2009, p. 54), portanto ela atendeu apenas à segunda parte do conceito. Os dados são relativos a duas partidas por seleção, para que sejam observados padrões. A efetividade que potencializa vitórias está ligada à capacidade de ser circunstancial no cumprimento da lógica, ser efetivo / econômico a cada ação, a cada partida. Afinal, em sistemas complexos, não lineares, caóticos, pode apenas potencializar resultados, jamais garanti-los.

Referências Bibliográficas

Anderson, C. e Sally, D. Os números do jogo: por que tudo o que você sabe sobre futebol está errado. Tradução: André Fontenelle. São Paulo, 2013.
FIFA. Disponível em: http://pt.fifa.com/confederationscup/statistics/index.htm. Acesso em: 05/07/2013.

Leitão, R.A.A. O jogo de futebol: investigação de sua estrutura, de seus modelos e da inteligência de jogo, do ponto de vista da complexidade. Tese de Doutorado em Educação Física. Faculdade de Educação Física da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). 2009. Campinas. 2009.